A herança bendita de FHC
Opiniao

A herança bendita de FHC

Confesso que me surpreendi positivamente com a forma atenciosa e engrandecedora com que a presidente Dilma Rousseff se referiu ao ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na mensagem a propósito dos 80 anos do ex-presidente.
Que belo gesto. Alguns amigos meus acham que foi mero formalismo. É difícil julgar a sinceridade das pessoas. Fico com a hipótese mais simples e mais simpática, e aplaudo a atitude para ressaltar a profunda diferença de estilo entre a cordialidade da presidente e a agressividade gratuita de seu antecessor em relação a FHC. Meu aplauso não significa, entretanto, um milímetro sequer de adesão ao governo atual ou aos partidos que compõem sua base de apoio.

Meu professor
O objetivo principal deste artigo, entretanto, é dar um depoimento pessoal sobre Fernando Henrique Cardoso. Eu o conheci em 1961, quando fui seu aluno no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), no antigo prédio da Rua Maria Antônia, em São Paulo.
Recordo com saudade daqueles tempos de fecundo convívio acadêmico com brilhantes professores que marcaram minha geração para sempre. Eram grandes mestres. Com o risco de omissão, além de FHC, relembro aqui os professores Flo-restan Fernandes, Cruz Costa, Octavio Ianni, Leôncio Martins e a antropóloga Gioconda Mussolini, entre tantos outros.
As aulas de sociologia de Fernando Henrique eram fascinantes, porque ele nos encantava pelo brilho de sua cultura e pela empatia com que se dirigia à nossa geração.
O golpe de 1964 levou Fernando Henrique para o exílio. Reencontrei-o durante as eleições de 1978 em plena luta nacional pela redemocratização do País. Gritamos a plenos pulmões, em 1984, nos comícios empolgantes da campanha das Diretas Já (ou seja, pelas eleições diretas para presidente da República, relembro para os mais jovens).
Nos palanques, imaginem, a mais ampla frente democrática que este País já conheceu, com Tancredo Neves, Teotônio Vilela, FHC, Franco Montoro, Mário Covas, Dante de Oliveira, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Roberto Freire, José Sarney, Lula, Orestes Quércia, José Richa, Pedro Simon e Miguel Arraes, entre muitos outros.
No meio da multidão, eu sentia um arrepio na alma ao ouvir o Hino Nacional na interpretação de Fafá de Belém. No comício final, no dia 16 de abril de 1984, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, éramos 1 milhão e meio de cidadãos ligados pelo sonho da redemocratização. Voltei para casa rouco e exausto, sonhando com as eleições diretas: um sonho de 21 anos.
Para profunda frustração de todos nós, as eleições diretas não vieram em 1984. A emenda Dante de Oliveira foi rejeitada por não alcançar o número mínimo de votos exigidos para a mudança constitucional que introduziria as eleições diretas.
Mas, para alegria da grande maioria da população, o Congresso elegeu Tancredo Neves, mesmo sem o apoio da bancada petista. O destino não permitiu que Tancredo não assumisse a presidência e, sim, Sarney.
Nas eleições de 1986, Fernando Henrique foi reeleito senador, quando aquele outro PMDB dos tempos da resistência obteve expressiva vitória em todo o Brasil, em grande parte graças à popularidade do Plano Cruzado. Naquelas eleições, Mário Covas e FHC foram os senadores mais votados da história: a votação de cada um deles foi maior do que a do governador eleito de São Paulo, Orestes Quércia. Mário Covas e Fernando Henrique tornaram-se naquele momento os principais líderes nacionais do PMDB.

Da Constituinte ao Plano Real
A Constituinte instalada em 1987 era a grande aspiração nacional. A Carta que ela produziu em 1988, entretanto, trouxe poucos avanços efetivos. É claro que, em numerosos pontos, abriu perspectivas inovadoras e positivas, como no caso das questões ambientais.
Com a retrospectiva de 23 anos de vigência e o número de emendas já aprovadas, a tão sonhada Constituição de 1988 mostrou-se prolixa e casuística, criando mais problemas do que soluções, principalmente por ter dado ao Estado excessivo número de responsabilidades, sem prever os meios para cumpri-los. Tudo virou “direito do cidadão e dever do Estado”, ainda que sem as devidas fontes de financiamento.
Sempre acompanhei com entusiasmo a trajetória de Mário Covas. Por isso, tinha grande esperança nas eleições de 1989, mas ele não conseguiu ir para o segundo turno. Na etapa final, Fernando Collor venceu Lula, prometendo feroz combate à corrupção e caça aos marajás em todo o País. Exibicionista, prometendo o que jamais poderia cumprir, seu governo deu no que deu. Assim, em setembro de 1992, o Congresso votou seu impeachment, sob a acusação de corrupção generalizada. Seu sucessor foi o vice-presidente Itamar Franco, que concluiu seu mandato com outro padrão de comportamento.
Foi no governo Itamar que nasceu o Plano Real. Fernando Henrique, escolhido ministro das Relações Exteriores, deixou o Itamaraty em maio de 1994 para assumir o Ministério da Fazenda e preparar o Plano Real, de combate à inflação, com a colaboração de uma equipe que incluía, entre outros, Pérsio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Pedro Malan, Edmar Bacha, Clóvis Carvalho e Winston Fritsch.
Qualquer cidadão comum ou dona de casa sabe que Plano Real foi um dos maiores sucessos econômicos e políticos da história do Brasil – o que é verdade. Talvez, seja até um caso exemplar no mundo. Só as pessoas muito jovens ou os garotos adolescentes, que não conheceram o que era inflação brasileira, talvez, ignorem sua importância. Vale relembrar, no entanto, que o PT votou maciçamente contra esse plano no Congresso e Lula fez lhe fez os mais duros ataques.

O presidente FHC
A inflação brasileira havia chegado a 46,58% ao mês, em junho de 1994. Nos 26 anos que decorreram de 1967 a 1993, a inflação brasileira cresceu 1,4 qua-trilhão por cento. Os mais pobres eram os que mais sofriam, porque não podiam atenuar seus efeitos com aplicações beneficiadas pela correção monetária.
Vencer esse processo corrosivo e perverso a curto prazo parecia algo impossível. Mas, a partir de julho de 1994, o milagre acontecia. Nas eleições de outubro de 1994, a popularidade gerada pelo sucesso do Plano Real levou Fernando Henrique Cardoso a vencer as eleições para a presidência da República no primeiro turno.
Fico feliz ao comprovar que, finalmente, alguém que representa verdadeiramente o PT – como a presidente Dilma Rousseff – reconhece esta verdade basilar: a “contribuição decisiva” de FHC ao desenvolvimento do País.

(Continua)

Ethevaldo Siqueira, colunista do Estadão (aos domingos), é jornalista especializado em telecomunicações e professor universitário, e-mail esiqueira@telequest.com.br