A herança bendita de FHC (Final)
Opiniao

A herança bendita de FHC (Final)

Como jornalista e sem qualquer custo para o Tesouro, tive a oportunidade de acompanhar cinco viagens de Fernando Henrique ao exterior, durante seus oito anos de mandato. Dessas viagens, destaco três: a Paris, a Washington e a Tóquio.
No início de seu mandato, numa caminhada às margens do Sena, da catedral de Notre Dame até o Museu do Louvre, nas proximidades da Ponte Alexandre III, dialogou em francês fluente com intelectuais e relembrou seus tempos de exílio. Noutra oportunidade, foi aplaudido de pé na Assembleia Nacional da França.
Em visita a Washington, em 19 de abril de 1995, data de um dos maiores atos terroristas da história dos Estados Unidos, causando a morte de mais de 600 pessoas em Oklahoma City, dialogou em inglês e em francês com dezenas de jornalistas sobre os problemas do mundo e do Brasil, numa conferência no National Press Club. Finalmente, em Tóquio, mostrou o quanto conhecia da cultura japonesa, em conversa com acadêmicos e jornalistas. Como brasileiro, me senti feliz em ter um presidente com esse nível de cultura.
Muitas contribuições
Relacionemos outros aspectos relevantes dessa contribuição. Fernando Henrique deu maior solidez ao sistema bancário com o Proer, projeto acerbamente criticado pela oposição petista. Além de sua ficha absolutamente limpa, como político e como administrador, Fernando Henrique demonstrou sua sensibilidade pelas camadas mais pobres ao criar o programa Bolsa-Escola, que Lula, com sua sagacidade, ampliou para o Bolsa-Família. Consolidou a democracia, inclusive na transição de governo em 2002, com a maior transparência já vista num processo sucessório. Não esqueceu o problema ambiental e evitou todos os apelos ao populismo.
Acrescento a essas realizações mais duas, que considero capazes de justificar o reconhecimento de sua “contribuição histórica” até pela presidente Dilma Rousseff.
Sem entrar em muitos detalhes, quero destacar duas realizações históricas de Fernando Henrique Cardoso, além do Plano Real:
a) A reforma do Estado brasileiro, com a privatização de grande número de empresas estatais. Sem recursos para investir em infraestrutura, o País vivia um círculo vicioso, ou emitia moeda para financiar tais investimentos, causando mais inflação, ou elevava os juros para estimular o empréstimo dos bancos.
b) A Lei de Responsabildade Fiscal, que forneceu um instrumento poderoso para acabar com os déficits – ou reduzi-los – nas administrações públicas, resultantes da gastança descontrolada dos municípios, dos Estados e da própria União.
Com relação à modernização do Estado brasileiro, relembro que, sem nenhuma participação no governo, acompanhei de perto o processo de desestatização das telecomunicações, mas porque conhecia o ministro das Comunicações Sérgio Motta desde os tempos de nossa resistência à ditadura.
Quero destacar aqui apenas o fato de as privatizações terem surgido na pauta do governo de Fernando Henrique, a partir de 1995, como caminho único e lógico a todos que analisassem com isenção e equilíbrio o que representava para o governo o peso de empresas estatais como a Telebrás, a Vale, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Embraer, entre outras.
Como estudioso do problema das telecomunicações brasileiras, procurei aproximar Sérgio Motta de algumas dezenas de especialistas e profissionais – competentes e probos – para que o ministro pudesse debater da forma mais ampla o futuro do setor e suas alternativas. Em poucos meses, Serjão se convenceu de que o melhor caminho para o Brasil seria, como foi, a privatização do Sistema Telebrás, sob nova legislação, com uma lei geral moderna e uma agência reguladora.
Lembro-me da resistência inicial oposta por Sérgio Motta e FHC à ideia de privatizar as estatais, nos primeiros meses de governo. O passado esquerdista e a formação intelectual marcada pelo marxismo eram, na cabeça deles – como foi na minha – os obstáculos difíceis de remover. Contrariando muitas acusações petistas, nunca concordamos com a privatização da Petrobrás, dos Correios, da Caixa Econômica ou do Banco do Brasil.
É claro que há pessoas sérias que, de boa fé, defendem a presença do Estado na maioria dos serviços públicos, na infraestrutura e, em especial, na operação dos serviços de telecomunicações. Elas supõem, sinceramente, que a empresa estatal trabalha em favor de toda a sociedade, em especial dos mais pobres, que pode acelerar o processo de inclusão digital e social. Outro grupo de pessoas, entretanto, vê as estatais apenas como plataformas de poder, de empreguismo e aparelhamento do Estado. Para isso, reativaram a velha Telebrás.
São essas pessoas que, na campanha eleitoral, demonizam todas as privatizações. Muitas dessas pessoas recorrem, agora, à estratégia de privatização dos aeroportos, como já ocorreu com algumas rodovias, de 2003 para cá.

Ethevaldo Siqueira, colunista do Estadão (aos domingos), é jornalista especializado em telecomunicações e professor universitário, e-mail esiqueira@telequest.com.br