Dona Morte e suas histórias
Opiniao

Dona Morte e suas histórias

Todas as noites eu ficava a espionar Seu Pereira que saía de casa para trabalhar numa firma que ficava do outro lado da cidade. Ele já passava dos cinquenta e todas as noites saía no início da madrugada rumo ao seu trabalho. De maleta na mão a trajar um blazer preto, caminhava uma curta distância até o terminal. Com ar cansado aguardava pelo fretado que o levaria à empresa.
Eu ficava atrás de uma estátua velha a vigiá-lo. A iluminação pública deixava a desejar, as madrugadas de outono eram frias e, num céu nebuloso, as estrelas mais fortes sobreviviam. Às vezes, a lua vinha dar “bom dia”, o que colaborava para um cenário bucólico. Os carros não transitavam, as pessoas não passavam, sua esposa e filhos já dormiam e o bairro era escuro. A cidade tornava-se deserta, mas eu sempre estava a acompanhá-lo.
Certa vez, logo depois de Seu Pereira fechar o portão de seu sobrado para ir trabalhar, eu o segui e, poucos passos depois, Seu Pereira pisou em falso num pequeno buraco encravado na calçada e torceu o pé. Ficou imóvel no chão, fez uma leve massagem, levantou e, manco, prosseguiu. Subi no fretado. O assento do Seu Pereira era sempre na primeira fila. Eu ficava na última poltrona, a ver a paisagem passar.Minutos antes do ônibus chegar à empresa, presenciei, através da janela, um acidente: um motoqueiro atravessou o sinal vermelho e um caminhão o atropelou. Mas eu ainda me concentrava em Seu Pereira.
No ofício de seu trabalho, ele era conhecido apenas como Pereira, e eu estava lá dentro da firma a acompanhar o seu trabalho de operador de máquina de corte naquela firma, cujo ramo era celulose e papel. Certa feita, a máquina quebrou e Seu Pereira teve que consertá-la. O supervisor ordenou não desligar nada, o que significava que os ajustes deveriam ser feitos com o aparelho ligado e, nessa ocasião, o dedo médio de Seu Pereira foi mutilado. O sangue espalhado era inevitável. Seu Pereira ficou uma semana sem sair de casa. Nesse tempo, ele só discutia com a mulher que não trabalhava, e as crianças estava, doentes.
Quando seu dedo melhorou, ele voltou à rotina novamente, e uma vez houve até um assalto na rua onde Seu Pereira morava: Dois homens saíram correndo em meio à escuridão, o rapaz que estava atrás atirou no que corria à frente e, por questão de milésimos, o projétil não atingiu a cabeça de Seu Pereira que naquele dia chegava em casa à cinco da manhã.
Passaram-se dois anos e, confesso, eu já estava cansada. Nessa época Seu Pereira havia ganhado indenização da empresa por danos morais e materiais, além de um auxílio alimentação. Até os 70 anos ele estava garantido com a folha de pagamento da empresa, além de um bônus de 50 salários mínimos pela perda do dedo, tudo graças ao primo que era um bom advogado.
Seus filhos estavam saudáveis e sua esposa já inserida no mercado. Eles se mudaram para outro estado por uma melhor qualidade de vida. Aliás, vida foi o que resolvi entregá-lo. Hoje a família vive feliz, e pode ter certeza que eu não vou infernizá-lo por um bom tempo.

“Os homens são como ondas: quando uma geração floresce, a outra declina.” – Homero, poeta grego (928 a.C – 898 a.C)